Violência Política para além do termo mulher: Uma afirmação da necessidade de uma perspectiva de gênero.

Segunda, 15 de agosto de 2022

Violência Política para além do termo mulher: Uma afirmação da necessidade de uma perspectiva de gênero.

A violência política tendo como alvos principais o grupo de gênero infelizmente não é novidade em nossa realidade política brasileira (muito menos mundial), contudo tivemos em 2021 a edição da Lei nº 14.192 que veio regulamentar o tema, somando-se então ao sistema protetivo de gênero no âmbito nacional. Ainda que seja uma enorme vitória e um instrumento de necessária proteção e exaltação, não passa imune à críticas quanto ao seu conteúdo, bem como com relação à sua aplicação pelos operadores do direito e tais críticas necessariamente passam por uma análise social e política das bases discriminatórias que fundam nosso país.

Os modelos liberais pensados para os espaços políticos, onde a liberdade é extrema e qualquer tipo de limitação ou restrição não é vista com bons olhos, deve abrir espaço, em se tratando da busca de uma democracia efetivamente representativa, para uma leitura inclusiva e interventiva na busca da agregação de minorias, em especial sob seu aspecto de gênero e racial.

O direito não se alimenta ou se basta sozinho, necessariamente, buscando a leitura mais inclusiva de eleições de maneira geral, precisa comunicar-se com a política, com a

antropologia e a percepção de quais sujeitos são os atingidos pela norma e quais as finalidades que um sistema democrático de direito realmente busca. Quando tratamos de normas que combatem ou que de certa forma, buscam eliminar os obstáculos sociais para que esses grupos minoritários acessem o poder, é uma reação natural na lógica da hermenêutica do oprimido, que esse grupo majoritário e dominante crie uma repulsa à essa ferramenta inclusiva.

Ninguém quer dar espaço que já ocupa de maneira efetiva, o discurso pode ser atraente e em se tratando de estratégias de mídia e inclusão em redes sociais, torna o discurso atrativo para aqueles que ainda estão de fora dos espaços de poder, atraem os votos, as afinidades, contudo, o discurso vazio de práticas demonstra que nos espaços e em quem controla essa ocupação, o acesso efetivo é ainda um sonho a ser concretizado.

O presente artigo como fruto

 

 

Nesse aspecto levanto duas questões em um primeiro momento a concepção de acesso e empoderamento como um movimento necessariamente coletivo e dois, a necessidade de olhar para as estruturas voltadas para o gerenciamento e cuidado de práticas de violência política de gênero e por fim, o objetivo do presente artigo, o alcance linguístico que vem limitado na norma.

O fato de termos uma ou pouco mais de mulheres que estão nesses espaços políticos, apesar da satisfação, não se pode entender que a missão não mais importa ou que o tema não tem mais relevância, pois quando falamos de empoderamento e de democracia inclusiva a ideia é que esse acesso seja coletivo, ou seja, que as barreiras existentes para a presença de minorias nos espaços de poder estejam cada vez mais sumindo, não apenas para mulheres, mas aplicando uma necessária interseccioalidade, também para mulheres negras.

Nesse aspecto a violência política de gênero não se basta, devendo haver também um olhar sobre a questão da mulher negra. Kimberlé Crenshaw ao cunhar o termo interseccionalidade na década de 902, avaliou um contencioso jurídico da fábrica da General Motors nos Estados Unidos, onde mulheres afro-americanas reclamavam pelo reconhecimento de uma situação discriminatória não apenas de gênero mas também de raça, nas contratações do estabelecimento. Ficou demonstrado que os recrutamentos de trabalhadores eram focados na chamada de homens brancos de maneira geral e em uma maneira de suavizar o discurso discriminatório, recrutava-se mulheres brancas e homens negros. A mulher negra, era excluída, recaindo sobre si uma dupla via de opressão, articulando-se no caso concreto então a presença da tão famosa intersecionalidade.

No campo político e de pesquisa em violência de gênero é importante não perder de vista esse detalhamento, sob risco de criarmos, sob pretexto de defesa e inclusão, mais uma margem de discriminação de grupos historicamente excluídos da participação política no Brasil.

 

Grada kilomba 3disse que uma mulher negra se identifica como mulher negra, uma mulher branca como uma mulher e um homem branco como uma pessoa, a força dessa mensagem nos remete necessariamente à importância de nomear as coisas como são e os riscos de continuarmos mantendo o direito e sua linguagem como refúgio de discriminação e exclusão, como uma mensagem repassada de não pertencimento aos grupos marginalizados de nossos espaços de poder e espaços políticos em geral.

Acerca do alcance linguístico do termo mulheres colocado na legislação cumpre ainda destacar a necessidade de uma leitura da norma sob o ponto de vista de gênero, inclusive coadunando-se com o objetivo disposto no Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero lançado em 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça, cujo trecho destaco a seguir:

“Para as magistradas e os magistrados comprometidos com a igualdade entre os gêneros, recomenda-se atenção à dimensão cultural da construção dos sujeitos de direito – e seus potenciais efeitos negativos. Isso pode ser feito a partir do questionamento sobre o papel que as características socialmente construídas podem ter ou não em determinada interpretação e sobre o potencial de perpetuação dessas características por uma decisão judicial. Como a atribuição de atributos não é homogênea entre membros de um mesmo grupo, é muito importante que magistradas e magistrados atentem para como outros marcadores sociais impactam a vida de diferentes mulheres.”4

As recentes alterações constitucionais e legislativas, ainda que sejam essenciais na formação de um sistema de proteção de gênero, vem pecando na limitação originada no termo “mulheres”, trazendo obstáculos ao cumprimento da real eficácia dessas normas. O §7º do artigo 17 da Constituição Federal, que informa sobre a necessidade de cumprimento de um percentual mínimo de 5% (cinco por cento) dos recursos do Fundo Partidário para criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, o §2º, inciso III do artigo 50-B da Lei nº 9.096/1995- Lei dos Partidos Políticos, que traz um percentual mínimo de espaço destinado para programas voltados à difusão da participação política das mulheres, o §7º do artigo 17 da Constituição Federal que igualmente traz o termo mulheres para destacar as destinatárias da agora constitucionalização do tempo de propaganda gratuita e de acesso aos fundos eleitorais em

percentual mínimo de 30% (proporcional à quantidade de candidaturas lançadas) e por fim, nossa discutida Lei de violência política, grafada como violência política contra mulheres.

A finalidade da norma é promover a inclusão feminina na política como objetivo do constituinte comprometido com a igualdade não apenas formal, mas também material, assim como visando um aprimoramento do nosso regime democrático. Contudo, a promoção e inclusão de grupos minoritários em matéria de gênero não se limita à alcançar somente mulheres. Insere-se aqui a busca de um critério de inclusão que não se limite à questão biológica, mas que permita incluir grupos excluídos dos espaços majoritários de poder em razão da condição de gênero.

A título de exemplo acerca das dificuldades impostas pela limitação do uso do termo mulheres para indicação de políticas afirmativas em prol do gênero, recentemente o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/2006, que trata em apertada síntese, de violência doméstica, aplica-se à mulher trans5, bem como importante destacar que esse sistema brasileiro de proteção de gênero também se alimenta da força normativa do sistema internacional de proteção em diversos documentos internacionais, tal como a Convenção de Belém do Pará (que faz expressamente menção em seu artigo 1º ao termo gênero) e os Princípios de Yogyakarta.

Com relação aos espaços institucionalizados, verifica-se que a resistência ao reconhecimento dos instrumentos legais de política afirmativa e as reservas de sua aplicação comprovam que os espaços institucionais também são espaços de potencial violência e mais, espaços de reprodução de um discurso discriminatório e excludente que acaba representando os interesses majoritários e dominantes nos espaços de poder. Romper com esse ciclo e essa resistência é uma missão para a sociedade civil e para as cúpulas institucionais e escolas de capacitação, na busca de reverberar os debates e a necessidade de absorção dos valores de igualdade material e inclusão.

Importante destacar que quando falamos de instituições, especialmente no campo do direito eleitoral, não são apenas os naturais legitimados para propositura de ações como o Ministério Público Eleitoral ou o poder judiciário que se encontram incluídos. No âmbito político, diante da natureza pública dos direitos envolvidos, o legislador imputou à diversos atores, a responsabilidade compartilhada de gestar nossa democracia, então ao lado dos poderes institucionais estritos temos partidos políticos e sociedade como atores fundamentais na fiscalização e no cuidado com a nossa representatividade.

Nesse ponto faço um destaque para os partidos políticos, pois conforme previsão específica da Lei 14.192 temos que devem adequar seus estatutos para dispor sobre prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher, ou seja, para além de todas as suas obrigações legais e constitucionais, reforçou o legislador o apontamento relacionado à violência política de gênero, basicamente impondo instâncias internas que consigam dar respostas à esse tipo de demanda.

Apesar de serem os Partidos Políticos entidades privadas, sua natureza e sua importância para defesa do sistema democrático brasileiro os colocam, inclusive por força constitucional, em uma situação destaque na missão de garantir que o sistema eleitoral funcione e que haja representatividade na política, inclusive, a Constituição Federal adotou o princípio da liberdade de organização ao assegurar ao partido político autonomia para definição de sua estrutura interna e funcionamento, contudo, essa liberdade não é absoluta, estando condicionada aos princípios do sistema democrático-representativo, do pluripartidarismo e da defesa dos direitos fundamentais (STF – MC-ADI 5311/DF)6.

Por fim, importante destacar qual o sentido de violência abrangida pela legislação que deve caminhar na interpretação da maior amplitude possível para seu alcance, ou seja, insere-se aqui todos os obstáculos à participação feminina em sua plenitude de gozo dos direitos políticos passivos e ativos, bem como qualquer impedimento à promoção dessa participação, seja de maneira direta, seja de maneira indireta.

Logo, a violência psicológica, desvios financeiros, problemas relacionados à ocupação de espaços, violência física, ameaças e coações, além do desvirtuamento das regras afirmativas de promoção da participação feminina são todos núcleos possíveis de subsunção à violência política de gênero, como categoria.

A responsabilização por esses atos não é apenas uma forma de retribuir o ato ilícito praticado com sanções, mas é também um recado passado para a sociedade e potenciais candidatas e detentoras de mandato eletivo, de que podem ingressar nos espaços públicos porque como cidadãs, possuem pertencimento e direito à estarem ali. A não aplicação dos instrumentos legais é um recado para mulheres de que suas vidas não importam e as violências sofridas, não são de responsabilidade do estado, é ao fim e a cabo, uma violência institucional.

A lei 14.192 de 2021 não inova em nossa realidade, pois a violência e os embaraços à participação de gênero sempre existiram na política, o que a lei faz é cristalizar no direito a existência de garantias para a responsabilização e prevenção de práticas discriminatórias no campo político e nesse ponto, a lei vem somar dentro de um microssistema nacional e internacional de proteção de gênero que em sua maior solução trazem um espaço de fala e de validação de discursos de mulheres em uma acepção de gênero, que sofrem ou que podem vir a sofrer violência.

A mídia e as redes em geral, especialmente com enfoque no marketing eleitoral, devem estar atentas para não reproduzir espaços de violência e linguagem discriminatória em especial atenção com o cuidado das responsabilidades dos sujeitos envolvidos na prevenção e responsabilização dos sujeitos envolvidos. Além dos esforços da mídia em geral, importante destacar a tentativa de centralizar esforços no campo da atuação Ministerial promovida pelo Grupo de Trabalho da Procuradoria Geral Eleitoral voltado ao combate e prevenção à violência política de gênero, não apenas no sentido de garantir um canal de denúncias que seja célere e efetivo, mas no esforço de acompanhar a atuação dos sujeitos políticos e as denúncias formuladas nesse campo, que podem ser acompanhadas de maneira transparente e em tempo real.7

O escopo do sistema de proteção de gênero do ponto de vista legal e sociológico é garantir o espaço de voz das mulheres, lato sensu, como define Rebeca Solnit “a fala é uma espécie de riqueza que vem sendo redistribuída” é garantir assim através dos instrumentos legais que haja uma perspectiva de gênero nas violências já existentes no mundo dos fatos, agora no ordenamento jurídico, ou seja, é garantir que haja identificação de que as violências cotidianas possuem sim, uma roupagem que é reforçada e protegida pela sociedade e estado patriarcal: fazer vozes serem ouvidas a partir de perspectivas não patriarcais é o grande mote da legislação, desconsiderar os aspectos sociológicos é na prática criar o maior obstáculo à efetividade das leis e políticas afirmativas e incentivar violências institucionais.

 

 

REFERÊNCIAS

 

CARTILHA OBSERVATÓRIO https://transparenciaeleitoral.com.br/wp-content/uploads/2021/12/Cartilha-PTBR.pdf

ONU MULHERES https://www.onumulheres.org.br/

https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf

 

GRADA KILOMBA, Memórias da Plantação, 2008

http://www.mpf.mp.br/pge/institucional/gt-violencia-de-genero

 

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5

de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:31 jan 2022.

 

HABERMAS, J. Direito e Democracia. Tradução de Flávio B. Siebeneicheler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

 

PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, Instituições e ideias. São Paulo: Lua Nova, n. 67, p. 15-47, 2006.

 

SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010.

 

URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? .São Paulo: Lua Nova, n. 67, p. 191-228, 2006.

 

https://www.scielo.br/j/ts/a/LhNLNH6YJB5HVJ6vnGpLgHz/?lang=pt

 

https://www.conjur.com.br/2021-ago-23/direito-eleitoral-combate-violencia-politica-genero-forma-fortalecimento-democracia

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